Mulher que viralizou com elogios a “Memórias Póstumas” cita agora Clarice Lispector

Courtney Henning Novak se propôs a ler um livro de cada país, termina “A Hora da Estrela” e diz: “como vocês vivem depois de ler Clarice Lispector?”
Courtney Henning Novak, de 45 anos, lançou um desafio pessoal: ler um livro de cada país do mundo. Depois de ler duas obras de Machado de Assis, americana agora se impressiona com a autora brasileira. (Foto: reprodução)

Depois de viralizar ao ler “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e não resistir à leitura de mais uma obra do mesmo autor, a americana Courney Henning Novak agora tem uma nova obsessão: Clarice Lispector.

 

Em um novo vídeo publicado nesta terça-feira (16), Courtney se diz impressionada após terminar o livro “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector.

“Como vocês conseguem continuar vivendo normalmente depois de ler Clarice Lispector?”, diz espantada.

Último romance da autora, publicado em 1977, “A Hora da Estrela” conta a história da jovem nordestina Macabéa.

Considerado o livro mais famoso de Clarice Lispector, a obra traz reflexões sobre os sonhos, manias e conflitos internos da protagonista.

Para Henning, novamente a escrita brasileira foi uma ótima surpresa. No vídeo, ela conta que muitas pessoas recomendaram que lesse o romance depois de sua obsessão por Machado de Assis e suas expectativas estavam altas pela quantidade de comentários positivos sobre a obra.

“Não consigo ler as passagens que eu mais amei, porque eu teria que ler o livro inteiro. […] Ela inventou sua própria maneira de escrever”, elogia.

A leitora disse ter se deparado com questões existenciais ao longo do livro, e refletido sobre solitude.

E afirma que sua leitura de obras de Clarice não deve parar por aí:

“Já encomendei a ‘Todos os Contos’, de Clarice, porque estou obcecada com essa mulher e preciso ler tudo que ela já escreveu”, afirma.

Hélio de Seixas Guimarães, professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP), conta que as principais obras de Machado “estão traduzidas para praticamente todas as línguas modernas e publicadas por boas editoras de vários países”.

“Machado de Assis tem bastante prestígio internacional, que só fez crescer a partir da segunda metade do século 20, principalmente nos meios acadêmicos e mais cultos”, explica Guimarães, que também é vice-diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, em São Paulo, e coordenador da coleção “Todos os livros de Machado de Assis”, da Todavia/Itaú Cultural.

E uma curiosidade: foi justamente a tradução da americana Flora Thompson-DeVeax para o inglês – versão lida por Courtney – que ampliou o alcance de “Memórias Póstumas” no exterior.

“Machado sempre atingiu um público restrito fora do Brasil. Isso talvez tenha começado a mudar com a tradução recente de Thomson-DeVeaux, que teve um lançamento bem-sucedido e agora chegou às redes sociais”.

“Tomara que isso ajude Machado de Assis a entrar em circuitos mais amplos de leitura”, diz Guimarães.

A tradutora comemorou o sucesso de seu trabalho. No Twitter, Flora postou:

“Eu vi o vídeo [da Courtney], gente!”

“Fiquei feliz demais de ver alguém tendo a mesma reação que eu quando eu li ‘Brás Cubas’ pela primeira vez com meu português precário: espanto e indignação de não ter convivido com o Machado desde sempre”. E aconselhou: “presenteiem os amigos gringos, espalhem essa alegria!”.

Um ‘defunto-autor’:

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” é contado por um “defunto-autor”: o personagem principal, Brás Cubas, traça sua própria biografia direto do túmulo.

A dedicatória, apresentada logo no início da história, já deixa evidente a mistura entre ironia, humor e horror:

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”

Não vamos aqui dar nenhum spoiler, claro.

Mas veja aspectos de destaque da obra, que ajudam a explicar por que Courtney estava quase terminando as 300 páginas em um só fim de semana:

Irreverência na linguagem:

“Penso que o próprio livro diz o que há nele de muito especial: a mistura muito peculiar de galhofa e melancolia, de riso e seriedade”

“Consegue o feito de ser muito profundo, em muitos sentidos terrível, e ao mesmo tempo muito engraçado e divertido de ler”.

“Há ali uma irreverência e uma liberdade de espírito que só encontramos muito raramente na literatura de qualquer tempo e lugar”, diz Hélio de Seixas Guimarães.

Revolução na literatura de seu tempo:

Fernando Marcílio, professor de literatura do Curso Anglo (SP), explica como Machado de Assis quebrou o padrão do Romantismo da época.

“Com ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, Machado foi iniciador de uma nova estética no Brasil: o Realismo”.

“A gente costuma dizer que ele foi um gênio porque questionou as bases da literatura de seu próprio tempo ao escrever um romance realista – realista nas bases do século XIX, desnudando a realidade humana e desfazendo as ilusões românticas”, diz.

“Por exemplo: Brás Cubas mede o envolvimento com uma mulher a partir do dinheiro que gastou com ela”.

“Quer algo menos ‘amor romântico’ do que isso?”

Representação do ser humano (de qualquer lugar do mundo):

As críticas sociais em “Memórias” não são explícitas como em “O Cortiço”, por exemplo, de Aluísio Azevedo.

Mas isso não significa que não haja uma representação dos seres humanos (e da sociedade brasileira).

“As personagens machadianas querem parecer algo que não são”.

“Brás Cubas, por exemplo, vive da aparência”.

“E nós tínhamos, no Brasil, a mesma hipocrisia: um discurso liberal, mas em uma sociedade ainda escravocrata”, afirma Marcílio.

O professor Hélio Guimarães reforça a universalidade do que é retratado na obra.

“Um livro como ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ permite conhecer melhor não só a história e a cultura brasileiras, mas a espécie humana, pela visão de uma das pessoas mais inteligentes, sensíveis e cultas que já viveram no Brasil”, afirma.

E, por mais que a representação seja fiel à realidade do século XIX, não deixa de ser atual e de gerar identificação com os novos leitores.

“Lendo a obra, os jovens podem tomar consciência e enxergar a raiz e o problema de dilemas sociais com que vivemos até hoje”.

“Os personagens são pessoas que conhecemos”.

“Todos nós temos referências de Brás Cubas ou Marcelas [outra personagem] nas nossas vidas”, diz Heric José Palos, coordenador de literatura do Curso Etapa (SP).

Por que você deve fugir dos resumos?

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” frequentemente integra a lista de obras obrigatórias de vestibulares.

Esteve, por exemplo, na relação de livros da Fuvest, da Universidade de São Paulo (USP), por longos períodos, como de 2013 a 2019.

Na internet, é possível encontrar dezenas de resumos da obra.

Bom, você deve imaginar que nenhum professor aprovará a ideia de trocar a leitura de um livro por uma página de síntese.

“É importante ler Machado, porque foi o melhor autor que produzimos no Brasil em todos os tempos”.

“É como alguém deixar uma herança milionária, mas você recusar. Recusar Machado é recusar o que de melhor foi produzido na nossa cultura”, diz Fernando Marcílio.

“O que está por trás das adaptações e dos resumos é só o que acontece, e não como acontece”.

“É um rebaixamento do leitor”.

“Existem edições originais com notas de rodapé explicativas que podem ser úteis para aprender e entender o desconhecido.”

Heric, do Etapa, afirma também que o resumo limita qualquer percepção mais ampla ou crítica do estudante.

“É fácil resumir: o livro é a história de um cara morto que conta sua própria vida”.

Mas não é só isso o que interessa”.

“Não é o que ele faz, e sim por que ele faz”.

“Lendo a íntegra, o leitor vai ter uma visão mais profunda dos personagens, com a linguagem refinada, sagaz e elegante de Machado de Assis.”

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