Entre as postagens que valem à pena visualizar, na olhada final numa rede social, me deparei com trecho de entrevista concedida pela neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel ao programa Roda Viva.
Friso de pronto que a entrevista não é recente: foi veiculada em 25 de março de 2013.
Porém, nada mais atual.
Ao falar sobre sua área, o processo do aprendizado, cérebro e outros temas, chamou a atenção (primeiro e em especial para o detentor do perfil, que escolheu este trecho) a resposta que deu a uma pergunta do jornalista Mario Sérgio Conti, que a indagou sobre o que era ser cientista no Brasil.
Sem titubear (ou, no popular, “na lata”), Souza Houzel disparou: “péssimo!”
E acrescentou que, na época, ela se deu ao trabalho de pesquisar no espaço oficial do Ministério do Trabalho as profissões regulamentadas no país.
Encontrou jogador de futebol e repentista – nada mais correto (ela disse apenas que não as desmerecia).
Por óbvio, também constam lá as de químico e biólogo – também corretamente.
Mas, a de pesquisador, alguém que possa se cadastrar como cientista, não constava.
Um dos comentários à postagem citava que conhecido da pessoa, que trabalhara na Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz – uma das mais prestigiadas na área de saúde no país), pesquisava um agente imunizante ou preventivo ao câncer de próstata.
Não conseguindo apoio, foi para os Estados Unidos, onde a pesquisa avançou e, segundo o autor do comentário, após desenvolvido o fármaco daí resultante, o Brasil teria que adquiri-lo a preços elevados.
Por não resistir em discutir essa dinâmica da pesquisa e da ciência – indo até os idos de Alexander von Humbolt, que levou do Brasil (do curare, planta conhecida dos indígenas) um dos princípios ativos do que veio a ser a anestesia – citei que seria bem empregado, pelo descaso do país, como um todo, à produção da ciência, de conhecimento, o gosto pelo saber, pela descoberta, o incentivo a isso e tudo o mais.
E como é dado aos ambientes virtuais – não falha nunca! – alguém respondeu a meu comentário algo do tipo do surrado “piorou no atual governo”.
Por dever não com partido, mas, com o conhecimento elementar, não tinha como não rebater.
Não foi com um texto como este, mas, para se ter uma ideia, o “resumo” que postei, não coube no total de toques da plataforma.
Por óbvio, me permiti discordar: uma vasculhada rápida sobre o tema vai revelar que os gestores da legenda do atual inquilino do Palácio do Planalto, quando no exercício da Presidência, legaram 18 universidades federais ao país (ele e sua sucessora).
O número pode parecer pouco aos críticos, mas, não custa lembrar que fundar e pôr para funcionar uma universidade não é o mesmo que construir uma escola (sem desmerecer a importância da unidade que inicia o precioso caminho da aprendizagem).
Naquele número não estão incluídos a ampliação dos campi das universidades já existentes (173) ou a implantação de institutos federais (360), além de alunos beneficiados, cujo quantitativo não mencionaremos por opção, porque o objetivo não é fazer propaganda para o governo.
Mas, cabe reconhecer seus méritos.
E, ao fundar universidades, está contribuindo para a pesquisa e a ciência, mesmo que não queira – já que um dos pilares da existência dessas instituições é a produção do saber: o segundo item no tripé ensino, pesquisa e extensão.
E caso não cumpra com algum deles, a fiscalização periódica do MEC adotará a medida cabível para este caso: descredenciar a instituição.
Simples assim.
O que nenhuma vai querer que aconteça.
Para melhor entendimento: a universidade tem que produzir ciência, dos trabalhos de conclusão de curso (TCCs) aos mestrados e doutorados; fora que a quantidade dos professores com este último título é um os requisitos para aquele ranqueamento periódico do MEC.
A remuneração adequada, no Brasil, a quem se dedicou tanto aos estudos, porém, é que é outro debate.
A questão, no entanto, vai muito, muito além de esquerda e direita nesse âmbito.
Ainda assim, temos vários representantes da direita (do ex-presidente Jair Bolsonaro a seu colega Donald Trump) que não ficam sequer embaraçados em fazer declarações negacionistas.
Com destaque – vergonhoso – para nosso representante passado, que declarou aberrações do tipo “se a floresta é úmida não pega fogo” ou “podemos viver sem ar, mas, não sem liberdade”.
A expressão “saber é poder” não se constitui numa frase vazia.
No tempo dos copistas, os responsáveis por copiar, página por página, os livros, na Idade Média (muito bem retratados no belíssimo “O nome da rosa”, baseado no romance homônimo de Umberto Eco), não viviam em conventos por acaso.
Não eram religiosos por acaso.
A Igreja, então o poder vigente no mundo ocidental, monopolizava esse saber: como cita o autor, para que alguém pudesse ler um livro cuja procura era, às vezes, façanha de uma vida inteira, teria que levar ao mosteiro onde se encontrava seu único exemplar outro – mas, que esse outro fosse do interesse do mosteiro.
Caso contrário, nada feito.
E a verdadeira revolução da humanidade para a disseminação do conhecimento, a imprensa com tipos móveis, por Gutemberg, só alcançou sua missão muito depois: primeiro, ele só recebeu autorização – adivinha de quem? – para reproduzir apenas um tipo de livro, as escrituras sagradas cristãs.
Do gestor atual, temos essa contribuição ao conhecimento; do anterior, o culto a um torturador: mesmo destino a que os poderosos da Idade média condenavam a quem fazia ciência e, incorriam no erro de desagradá-los.
Galileu se humilhou e renegou o que dissera para ficar vivo.
O Papa São João Paulo II, num ato da grandeza que lhe era peculiar, pediu perdão ao inventor do telescópio.
Já o dinamarquês Ticho Brahe, que também fez descobertas que contrariaram a Igreja, não quis se retratar e acabou queimado vivo.
Voltando às universidades, não custa lembrar o quanto a história oficial é apenas mais um componente a reforçar esse estado de coisas – o tal do status quo.
Aprendemos que a primeira universidade do mundo foi a de Bolonha, na Itália, fundada no longínquo ano de 1088.
Porém, nada menos que dois séculos antes, em 859, há os registros da fundação do que se tem como sendo a primeira universidade: Al Quaraouiyine, em Fez, grande entreposto comercial no Marrocos, norte da África.
Um século depois, em 988, há o registro da Universidade de Alazar, no Cairo (Egito).
Alguns fazem a ressalva de que se tem como a mais antiga Ez-Zitouna, fundada em 733.
Mas, como não há consenso, ela não é reconhecida como a primeira.
À universidade italiana cabe o mérito de ter sido a primeira instituição a adotar este nome da categoria pelo qual são conhecidas e nominadas as instituições do mais alto nível de ensino em todo o mundo.
Com a universidade marroquina, Ez-Zitouna tem em comum o fato de também ficar no norte da África (Tunes), de onde saíram os mouros.
É, aqueles mesmos que retratamos como vilões em folguedos populares e dos quais só agora nos chegam as releituras de devermos a eles toda uma cultura que vai do açúcar à álgebra, passando pelo cuscuz e o não menos importante – porém, para a saúde importantíssimo! – álcool, enquanto agente antibacteriano e, para muitos, o salvador da Europa – até hoje cultuada por muitas coisas, menos pela higiene – em períodos de pragas e pestes.
Nas Américas, a primeira universidade foi fundada no Peru, em 1551: Universidad Nacional Mayor de San Marcos.
Assim como o último país a abolir a escravidão no continente americano, o Brasil foi, também o último a ter uma universidade – aliás, uma instituição de ensino superior.
Pasmem, porém, até o início do século XIX, o país não possuía nenhum curso desse nível de ensino.
Só após a familiar real portuguesa chegar ao Brasil, em 1808, foram fundadas duas escolas de Medicina – quase como uma operação de contingência, pela presença de “pessoas tão importantes” em nosso território.
Outra área, o Direito, só mereceu cursos desse nível em 1827, com as faculdades de Olinda e São Paulo.
A observação é inevitável: entre outros tantos movimentos em defesa do país e de seu povo, a Inconfidência Mineira foi planejada por jovens idealistas que foram estudar na Europa – em universidades.
Mesmo espaço de resistência à ditadura militar e a outros abusos autoritários brasileiros.
E que, hoje, se constitui no reduto para as novas ferramentas que dominarão o mundo – e que respondem pelo nome de tecnologia.
No lugar das discussões sobre a Terra ser ou não o centro do universo, o tema da vez são os algoritmos e a inteligência artificial, tão acirrados, atualmente, quanto foram aqueles, em sua época.
Está pacificado, graças à ciência, que o motivo de mandar gente para a fogueira, no passado, é “coisa do passado”, certo?
Errado.
Que o diga a existência de terraplanistas e a kafkiana história das também cientistas Laura Marise e Ana Bonassa.
Criadoras de um perfil em rede social, cujo título – “Nunca Vi uma cientista” – ironiza esse universo e serve de crítica à baixa presença de mulheres na atividade, foram processadas por desmentir postagens de conteúdo prejudicial, que apregoavam os tais remédios milagrosos para isso e para aquilo.
O mais grave: a condenação foi mantida e elas obrigadas a pagar indenização – condenadas pela justiça por falar a verdade.
O erro só foi desfeito quando chegou caso chegou ao STF!
Como vemos, defender o conhecimento continua tão em discussão quanto sempre esteve.