Palco, aborto, vacinas e doenças erradicadas

Parece uma busca pelos holofotes, mas, o discurso bolsonarista – também ideológico – é mais lesivo que parece
Ofício do vereador e página eletrônica do Diário de Pernambuco – já repercutindo registro feito pelo “Estado de Minas” (no destaque); apoiador do ex-presidente disse que artista não teve “respeito com público (...), mas, com suas próprias ideologias”; outras autoridades enalteceram posição do cantor. (Foto: reprodução)

O episódio em que o vereador por Maceió, Leonardo Dias (PL) pediu à Prefeitura que suspenda o cachê do cantor Nando Reis por ter cobrado a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro ganhou destaque e virou notícia de âmbito nacional.

A busca pelos holofotes, seguindo a própria diretriz bolsonarista (por sua vez, já herdada de Steve Bannon, guru de Donald Trump) não se resume a isso – e a estratégia é mais lesiva do que parece.

Espaço para debate rendeu.

Página eletrônica do Diário de Pernambuco traz a manchete “Vereador pede suspensão de cachê de Nando Reis por fala contra Bolsonaro” – e vale o adendo: a matéria já é uma republicação de conteúdo divulgado pelo periódico “Estado de Minhas”.

De acordo com a página eletrônica do alagoano “Tribuna do Sertão”, o vereador criticou o artista e a própria Prefeitura:

‘’Lamento que a Prefeitura de Maceió tenha dado espaço a ‘artistas’ que não têm respeito com o seu público, mas com suas próprias ideologias”.

“Nando Reis não merecia receber dinheiro dos contribuintes da única capital do Nordeste que escolheu Bolsonaro. Errou a Prefeitura de Maceió.’’, escreveu o vereador.

Como noticiado mais cedo, Dias (PL) protocolou pedido para que o prefeito JHC (PL) determine a “suspensão do pagamento do cachê do artista”, motivado pela manifestação do músico, no último dia do festival promovido pelo município – que tem à frente o prefeito – filiado à legenda de Bolsonaro.

Na quarta estrofe da música “Do seu lado”, da banda mineira Jota Quest e regravada pelo músico paulistano, em vez do original “Fim de semana no sítio / (…) Viver é uma arte, é um ofício / Só que precisa cuidado”, Nando Reis colocou “o Brasil só vai ter jeito na hora da prisão do Bolsonaro”.

O blog entrou em contato com a Prefeitura, pedindo posição oficial sobre o caso, mas, até o momento não teve retorno.

A impropriedade da solicitação do vereador está no formato da própria contratação.

Apuração da reportagem mostra que o protocolo para formalizar uma apresentação de artistas desse porte no país é de que a atração “não sobe ao palco sem receber”.

O comum é metade ser pago no ato de assinatura do contrato e a outra metade num período entre 24 a 48 horas antes do evento.

Daí porque não se sustenta a alegação do vereador de pedir à Prefeitura a “suspensão” do pagamento.

A quitação já se deu.

Não seria o próprio autor do pedido sabedor do regime da contratação?

Como bem lembrado por um dos jornalistas que integram a equipe do portal Mídia Caeté, é necessário que os veículos de imprensa limitem o espaço para o discurso de representantes da direita – o vereador Leonardo Dias é o mais expressivo desse segmento, na Câmara de Maceió.

A despeito da pertinência da colocação, vale lembrar que o discurso da direita, se não rechaçado, encontrará terreno fértil para se proliferar, além da mera “lacração”, como citaram críticos da iniciativa do integrante da Câmara.

Fértil porque reproduzido sem qualquer contextualização ou questionamento.

A crítica à “ideologia” faz parecer que ser favorável às ideias do ex-presidente – caso de Dias – não fosse, também, uma ideologia.

E omite que apenas mais uma voz a pedir a prisão do ex-presidente, por desmandos diversos – os da pandemia são “apenas” (com todo o respeito às vítimas e entes queridos) mais um – soa menos grave que o valor pago a Gusttavo Lima, atração também custeada com dinheiro do contribuinte municipal, em detrimento às atrações locais.

Por tudo que investigações – da PF às CPIs – têm mostrado em relação a Bolsonaro, Maceió errou, sim: ao destoar do Nordeste e ser a única entre as capitais a dar-lhe mais votos que seu concorrente – e por duas eleições seguidas.

E se o público – pelo menos o que foi pelo cantor – estava lá, era por gostar de sua música, sentir-se bem com seu show e se identificar com o que diz, musical, lírica e politicamente.

Os índices de cobertura vacinal em queda e o retorno de doenças que haviam sido erradicadas mostram a importância do combate ao discurso negacionista que o bolsonarismo conseguiu fazer aflorar no país.

E a propósito: no mesmo dia em que o Tribunal de Justiça de Alagoas manteve a decisão de suspender os efeitos da lei de autoria do mesmo vereador de obrigar mulheres a ver vídeos de aborto caso procurem a rede pública para passar pelo procedimento – mesmo nos casos previstos de aborto legal no país –, reportagem da Agência Brasil (reproduzida pelo portal) mostra o dano que iniciativas estaduais e municipais causam para o atendimento de mulheres que procuram o serviço.

O caso estadual mencionado é de Goiás – adivinha qual o caso municipal citado na reportagem?

“Se você cria barreiras municipais e estaduais ao aborto legal, nada impede que essas pessoas que estão buscando o serviço no SUS naquele município busque outra forma para acessar o direito e, assim, você cria novas formas de vulnerabilização”, diz especialista citada pela Agência Brasil.

“Essa oscilação [de legislações estaduais e municipais] também é muito prejudicial, principalmente para crianças que vão buscar o serviço de aborto, muitas vezes em um estado de gestação avançado, por uma questão de dificuldade de comunicar que houve a violência sexual, mas também uma dificuldade de perceber essa gestação”, acrescenta a especialista.

E como estamos falando do assunto…

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