Paciente relata ‘graxa no pulmão’ por uso de vape, diz que ‘aparelho mata’ e que legalização nem deve ser debatida

Farmacêutico de 47 anos, passou mais de mês na UTI e pulmão em "colapso"; nesta sexta (1º), Anvisa decide consulta pública
Arnaldo usou cigarro eletrônico por nove meses, teve evali (sigla em inglês de “e-cigarette and vaping associated lung injury”, ou lesão pulmonar associada a cigarro eletrônico e vape) e passou 43 dias na UTI. (Foto: reprodução/arquivo pessoal)

Puxar o ar pelo nariz, mas não conseguir respirar. Sensação de “quase morte”. Cansaço para fazer as atividades mais simples do dia a dia. Esse é o relato do farmacêutico Arnaldo Machado, 47 anos, que teve complicações graves após o uso de cigarros eletrônicos, também conhecidos como vapes, e passou um mês e meio na UTI entre a vida e a morte.

Embora a comercialização no Brasil seja proibida, esses dispositivos podem ser encontrados em qualquer esquina – e o consumo, especialmente entre os jovens, só tem aumentado, com sérias consequências para a saúde.

“Eu tive um colapso, meu pulmão parou e aí eu passei a jornada mais cruel da minha vida por conta de um aparelho que hoje eu vejo milhares de pessoas fazendo o uso. Esse aparelho mata, esse aparelho tira vida, não deveria nem estar sendo discutida a possibilidade de ele ser legalizado”, afirma o farmacêutico Arnaldo Machado.

Em meio a esse cenário, a diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se reúne na sexta-feira (1°) para discutir uma proposta de consulta pública para revisar a norma vigente, que atualmente regulamenta a proibição. Em paralelo, começou a tramitar no Senado Federal um projeto de lei que, se aprovado, autorizará a venda no país.

Como pano de fundo, há uma pressão da indústria do tabaco: o argumento principal é que permitir a venda facilitaria o controle. De outro lado, entidades médicas e especialistas refutam essa justificativa e alegam que a autorização seria um risco à saúde e um retrocesso no combate ao fumo.

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM), Instituto Nacional do Câncer (Inca), Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e Associação Médica Brasileira (AMB), entre outras entidades médicas, se posicionam contra a liberação dos cigarros eletrônicos no Brasil (abaixo, veja os argumentos contra e a favor da liberação).

Como funciona o vape

Com aroma e sabor agradáveis, os vapes chegaram ao mercado em 2005 com a propaganda de serem uma opção menos agressiva que o cigarro comum para pessoas dependentes de nicotina.

O argumento principal dos defensores é que, ao contrário do cigarro comum, que contém tabaco e funciona por combustão (queima), liberando monóxido de carbono (que é cancerígeno), o vape é por vaporização, sem queima e, por isso, menos prejudicial.

Só que a realidade é diferente, de acordo com a explicação dos especialistas. O cigarro eletrônico tem mais de duas mil substâncias, várias delas tóxicas e cancerígenas, como: glicerol, propilenoglicol, formaldeído, o acetaldeído, a acroleína e a acetona.

Para além disso, a maioria tem nicotina — substância altamente viciante — e em maior quantidade que o cigarro comum. O que faz com que as pessoas se viciem mais rápido.

Em menos de duas décadas dos dispositivos no mercado, ele já deu origem a uma doença específica, com estragos são devastadores, mesmo entre aqueles que fumam vape há pouco tempo. Uma lesão pulmonar que pode levar à morte em um curto espaço de tempo: a evali.

Graxa no pulmão e três paradas cardíacas

Arnaldo Machado tinha uma rotina saudável e se surpreendeu com a rapidez com que ficou doente por causa do cigarro eletrônico.

Ele conta que nunca tinha fumado cigarro comum antes de ter acesso ao cigarro eletrônico. Ele usava o dispositivo de uma empresa norte-americana em formato de pen-drive que havia ganhado de presente. A essência de menta o levou a pensar que não seria prejudicial.

“Tinha um sabor de menta gostoso, suave, que até parecia inofensivo. Não tinha nada a ver com cigarro comum. Passei a usá-lo socialmente. Depois, dava umas duas tragadas por dia. Fiz isso por nove meses até ver a minha vida mudar completamente”, relembra.

Em uma certa manhã, ele decidiu dar uma tragada, sentiu dor no peito e desistiu. No fim do dia, tentou de novo e, na sequência, teve febre e buscou o médico.

“Quando vi a imagem do meu pulmão na radiografia, eu não acreditei. Estava completamente comprometido. Dois dias depois, já não conseguia respirar. Parecia que eu estava morrendo”, relata Arnaldo Machado, 47 anos.

Ele precisou ser intubado às pressas e, depois, fazer uma traqueostomia, enquanto os médicos corriam contra o tempo para entender o que acontecia com ele.

Covid, tuberculose, pneumonia – tudo foi investigado até saberem que ele estava usando cigarro eletrônico e o diagnosticarem com evali (sigla em inglês para lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico).

“O problema é que o cigarro eletrônico ele forma um vapor, aquele vapor ele forma um óleo, esse óleo atinge os alvéolos pulmonares, forma uma espécie de uma graxa e impede a troca gasosa de oxigênio com CO2 e teu pulmão entra num colapso. E foi exatamente o que aconteceu comigo”, conta Arnaldo Machado, farmacêutico diagnosticado com evali.

20 cigarros convencionais

Um dos pontos que levam pessoas de forma rápida aos hospitais após o uso de cigarros eletrônicos é a quantidade de substâncias ingeridas.

Segundo a Associação Médica Brasileira (AMB), o vape tem maior índice de nicotina e, por isso, causa dependência mais rápido. Por exemplo, fumar uma carga de um cigarro eletrônico no formato de pen drive, pode equivaler a fumar 20 cigarros convencionais.

Surto de doença no exterior e subnotificação no Brasil

A evali foi descrita na literatura médica pela primeira vez em 2019, nos Estados Unidos, quando pacientes jovens começaram a ser internados com falta de ar, tosse e dor no peito, náusea, vômito, diarreia, fadiga, febre e perda de peso.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) abriu uma investigação de emergência e descobriu que os pacientes tinham em comum o uso de cigarros eletrônicos. Foi então que a doença foi classificada. Até 2020, segundo o CDC, foram 2,7 mil pessoas internadas e 60 mortes registradas em decorrência do uso de vapes. Com a pandemia de Covid-19, no entanto, os casos deixaram de ser contabilizados.

Cigarro eletrônico: ‘Estamos criando uma legião de dependentes de nicotina’, diz Drauzio Varella

O médico pneumatologista Felipe Marques, do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, publicou um artigo sobre a doença após atender uma paciente com uma pneumonia que se repetia sem explicação até descobrir que se tratava de um caso de evali.

Ele explica que não há um exame específico e o diagnóstico precisa ser feito por exclusão e isso é um risco para o paciente.

“O vape tem substâncias tóxicas que agridem nosso pulmão, então ele responde tentando evitar o agressor recrutando células do sistema imunológico que podem ‘machucar’ nosso sistema pulmonar causando lesões. Não temos como diagnosticar por exame, depende do paciente e às vezes eles não conseguem nos falar”, Felipe Marques, médico pneumatologista.

No caso de Arnaldo, não foi ele quem contou aos médicos sobre o uso do vape, porque já estava sedado. Foi a esposa que levantou a questão do cigarro eletrônico e os médicos fecharam o diagnóstico. Ele conta que isso não foi citado antes porque, assim como ele, a família achou que o cigarro eletrônico era inofensivo à saúde.

A paciente de Marques teve duas pneumonias em um pequeno intervalo de tempo, com recuperação difícil. Na segunda internação, depois de uma série de exames negativos e já na UTI, ela comentou que usava cigarro eletrônico.

No caso dela, havia ainda um ponto específico que é o consumo de maconha por vaporização. Uma das substâncias presentes neste tipo de cigarro é o acetato de vitamina E — uma substância oleosa que gruda no tecido pulmonar. A substância tem sido uma das mais ligadas aos números de casos de evali, mas a hipótese de que só essa substância seja a causadora da doença ainda não foi validada.

No Brasil, há nove casos registrados de evali de 2019 a 2020, segundo a Anvisa, No entanto, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) alerta que a doença é subnotificada. Ou seja, há um número oficial de casos menor que a realidade. Isso porque, no país, a notificação de casos é voluntária e não compulsória – o que é uma demanda da classe médica para ter uma real dimensão do problema no país.

Especialistas unem forças contra a indústria

Com a rediscussão da proibição e o projeto de lei no Senado, a indústria do tabaco, que move US$ 1,4 milhões no Brasil, tem feito esforços pela liberação do cigarro eletrônico.

Os produtores argumentam que os vapes são contenção de danos para quem fuma cigarro convencional, com menos riscos e que a liberação é a única maneira de proibir que jovens e adolescentes consumam.

Por outro lado, entidades médicas e especialistas têm se unido para lutar contra a mudança e defendem que os argumentos da indústria não têm base científica.

Veja abaixo os argumentos apresentados pela indústria e por quem é contra a mudança na regra.

Cigarros eletrônicos são melhores que cigarro comum?

O que diz quem é a favor da liberação: A indústria argumenta que os cigarros eletrônicos funcionam como “redução de danos”. Ou seja, de que são uma forma menos prejudicial de acesso à nicotina para pessoas viciadas. Para isso, apresentam um relatório feito pelo Kings College, do Reino Unido, que diz que vaporizadores são 95% menos prejudiciais que o cigarro comum.

O documento chega à conclusão a partir de uma revisão de artigos publicados e de pesquisas feitas anteriormente por outros institutos com pessoas que usaram cigarro eletrônico, mas em curto prazo.

O que diz quem é contra liberação: Os especialistas refutam o argumento porque dizem que a análise não oferece base para concluir o risco 95% menor.

“Essa classificação de risco é uma falácia que não tem qualquer evidência científica. Pudemos ver isso com a crise nos Estados Unidos com pessoas morrendo por doenças associadas aos vapes. Precisamos lembrar que é um dado que vem de uma indústria que quando apresentou o cigarro tradicional jurou que a nicotina não viciava. Como podemos confiar?” diz André Szklo, epidemiologista especialista em controle do tabaco do Instituto Nacional do Câncer.

O médico e coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB, Ricardo Meireles, explica que não existe redução de danos para o tratamento do tabagismo, que mata cerca de 400 pessoas por dia no Brasil. A única forma é cessar o uso de qualquer fumo.

“Não existe redução de danos no tabagismo. Estamos vivendo agora o que vivemos um século atrás, quando o cigarro começou a circular. No começo, as pessoas não sabiam que o cigarro fazia mal e foram muitas mortes até que soubéssemos a verdade. Hoje, o cigarro eletrônico está no mercado há poucos anos e já tem uma doença para chamar de sua, que é a evali. Não podemos deixar a história se repetir”, explica

É preciso regulamentar os cigarros eletrônicos

O que diz quem é a favor da liberação: A indústria alega que é preciso regulamentar para que haja regras sobre o consumo e que as pessoas parem de consumir o produto clandestino. “Somente a regulamentação poderá estabelecer requisitos sobre quais produtos poderão ser comercializados e prevenir o consumo de jovens que, sob nenhuma hipótese, devem ter acesso a esses produtos”.

O que diz quem é contra a liberação: Segundo Margareth Dalcomo, presidente da SBPT e membro da Academia Nacional de Medicina, o cigarro eletrônico é regulamentado no Brasil: ele é proibido. Ela explica que desde 2009 a Anvisa criou uma regra ao proibir a produção e comercialização dos dispositivos no país.

Segundo Dalcomo, as entidades médicas têm unido esforços e reunidos pneumologistas, cardiologistas, oncologistas e pediatras para endossar o coro contra qualquer mudança na regra.

“Desde 2009 nós temos uma regulamentação feita pela Anvisa que proíbe a comercialização de qualquer produto que tenha tabaco aquecido e é essa regulamentação que nós defendemos. Pensar em mudar isso é um equívoco, uma inversão de valores enorme”, afirma Dalcomo.

O consumo de cigarros eletrônicos é crescente e já é uma questão de saúde pública

O que diz quem defende: A Abifumo, que representa as empresas que produzem cigarro, explica que o número de usuários dos dispositivos no Brasil quadruplicou nos últimos 4 anos e chegou a 2,2 milhões de usuários. Os números são da pesquisa Ipec divulgada este ano. Com o aumento, argumentam que seria necessário liberar para controlar quem tem acesso aos cigarros eletrônicos.

O que diz quem é contra: Os especialistas dizem que o número cresceu, mas é pequeno se comparado ao volume de fumantes no Brasil, cerca de 25 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Com isso, defendem que o melhor cenário é seguir proibido para frear a crescente.

“O momento agora é barrar, se tem 2,2 milhões de pessoas usando isso, a gente precisa agir para que elas não migrem para o cigarro convencional e impedir a expansão de novos fumantes. Agir diferente disso, é cometer o mesmo erro do século passado ao liberar o cigarro convencional que leva milhares de pessoas à morte”, explica Ricardo Meireles, pneumologista e Coordenador da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB.

O produto é feito para adultos

O que diz quem defende: A indústria explica que o produto é feito para pessoas adultas como contenção de danos ao cigarro e que optaram por não parar de fumar.

O que diz quem é contra: Os especialistas apontam que os aromas e sabores de frutas são um apelo aos mais jovens e os vapes são moda entre adolescentes. Nos Estados Unidos, que permite a comercialização dos dispositivos, uma das empresas fabricantes teve que pagar uma multa de R$ 2,3 bilhões por fazer propaganda de cigarros com apelo para menores de idade.

No Brasil, segundo a pesquisa da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), feita em 2019, 60% das pessoas entrevistadas, de uma amostragem de mais de 52 mil, disse que usava vape e que nunca tinha fumado antes. Ou seja, não são parte dos usuários de cigarro convencional, mas um novo público dependente de nicotina. Além disso, a maioria tinha até 24 anos.

“Eu tenho atendido adolescentes com pulmões que parecem de uma pessoa de 90 anos. Eu cheguei a falar com uma escola particular de elite no Rio de Janeiro depois de atender pacientes que diziam fumavam no banheiro. São adolescentes dependentes químicos sem saber”, diz Margareth Dalcomo, membro da Academia Nacional de Medicina.

O epidemiologista do Inca, André, reforça que o posicionamento de mercado da indústria de cigarro eletrônico é de, segundo ele, criar uma geração de dependentes de nicotina. Isso porque o perfil do usuário é de não fumantes, jovens e com mais escolaridade.

“A lógica principal dos vapes é criar uma geração de dependentes de nicotina. Até por isso o apelo por aromas e sabores. Eles chegam a pessoas que não têm o perfil de um fumante convencional e as tornam viciados. Com isso, um jovem que usa vape tem quatro vezes mais chance de usar o cigarro comum, que também é mais barato”, explica.

Documentário no Globoplay

O documentário “Cigarro eletrônico: como tudo deu errado”, produzido pelo jornal “New York Times”, conta a história da empresa Juul, que dominou o mercado de cigarros eletrônicos nos Estados Unidos, oferecendo justamente uma alternativa para quem tentava largar o vício. Só que a Juul foi processada e teve que comparecer a uma audiência no Congresso para esclarecer sua participação no que foi chamado de “epidemia de nicotina entre os jovens”. O documentário está disponível no Globoplay.

Poliana Casemiro, G1

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