Todo dia, inclusive nos feriados, Jandira dos Anjos Motta acorda pontualmente às cinco da manhã para alimentar mais de cinquenta galinhas, além de seus galos, patos, perus, as tartarugas Pitica e Pitoco (que moram no banheiro), o papagaio Charmoso e o vira-lata Pituxa.
Solteira e sem filhos, ela mora sozinha em um sítio na Serra da Cantareira, em Mairiporã, na Grande São Paulo. Tem 61 anos, já se aposentou, mas continua a prestar serviços para a mesma fábrica de produtos ortopédicos onde bateu ponto durante 27 anos.
“Eu não gosto de ninguém falando o que eu tenho que fazer e quando. Gosto demais da minha liberdade”, diz Motta.
Deve ser por isso que ela também não se incomoda com a solidão. “Mas eu nunca estou sozinha”, avisa.
“Estou com ele” – e aponta, sorrindo, para um pequeno aparelho de rádio.
Embora tenha acesso a uma internet de ponta em sua casa, Motta prefere pautar sua rotina pela programação radiofônica.
“Já tentei escutar rádio em aplicativo de celular, mas não gostei. Gosto mesmo de ouvir no radinho de pilha. De ligar, sintonizar, procurar estação. É como se fosse meu ritual.”
Esse hábito cotidiano a coloca no grupo das 94 126 pessoas que ainda ouvem rádios AM na Grande São Paulo, de acordo com uma pesquisa da Kantar Ibope Media.
“Eu cresci ouvindo rádio e vou morrer ouvindo. A rádio AM fala comigo, toca as músicas que eu gosto”, diz Motta. A Super Rádio é a sua emissora predileta.
No estado de São Paulo, a Super Rádio – um dos braços da Rede Mundial de Comunicações, também chamada Grupo Paulo Abreu – era, até pouco tempo, a segunda emissora AM mais ouvida, perdendo apenas para a Rádio Capital.
Em setembro, ela entrou para a lista das 1 167 estações em todo o Brasil que já aproveitaram o incentivo do governo – a dispensa de licitação – para migrar da frequência AM (sigla para “amplitude modulada”) para a FM (“frequência modulada”), em cumprimento ao decreto federal nº 8139, de 2013.
O decreto determina a extinção da frequência SM local no país e dá um prazo até 31 de dezembro deste ano para a migração das rádios.
A emissora local que não fizer a migração até essa data não perderá a outorga, nem deixará de existir, mas se tornará automaticamente uma rádio SM de característica regional, cujo alcance é um pouco maior.
A outorga é a autorização de funcionamento dada pelo governo.
As diferenças entre as faixas AM se devem à potência em kW (quilowatt) e ao seu alcance em quilômetros. A AM local vai até 1 kW, com alcance máximo de 5 km.
A regional varia entre 1 kWe 10 kW (e chega até 10 km) e a nacional tem potência acima de 10 kW, com alcance máximo de 15 km. De acordo com o decreto, as emissoras de AM locais que não migrarem serão extintas, restando apenas as regionais e as nacionais.
Para abrigar as rádios AM locais que estão migrando para a faixa FM, o governo e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aumentaram a extensão desta última frequência. Antes, a faixa FM variava entre 87,7 MHz e 107,9 MHz (mega-hertz). Agora, começa em 76,1 MHz. Ao fazer a migração, a Super Rádio – que era uma emissora regional, mas mesmo assim optou pela mudança – deixou o 1150 khz (quilo-hertz) na frequência AM e passará a ocupar o 80,7 MHz na FM.
A mudança não é meramente técnica e funcional.
É sinal da crise das rádios AM, iniciada há décadas, com a expansão das FMs, que têm qualidade de som superior e para onde se desviou grande parte do público e da publicidade.
O declínio se ampliou agora com a popularização dos celulares, fenômeno que afeta, aliás, todo o sistema de rádio.
É difícil sintonizar a frequência AM no celular, o que não ocorre com a FM.
Segundo o professor Guido Stolfi, do Departamento de Engenharia de Telecomunicações e Controle da Escola Politécnica da USP, para que consiga receber a frequência AM um celular teria que ter o dobro de tamanho e de peso.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_207 com o título “Ondas migratórias”.
Juliana Faddul – Revista Piauí