O presidente Lula teve a coragem de dizer o que nenhum outro dirigente no mundo teve.
Nem os europeus.
E vale frisar: dirigentes – porque líder é quem tem postura compatível com a de um, e a exerce como tal.
O complemento – “doa a quem doer” – virou chavão e, por causa de outro brasileiro, já está carregado de estigma.
Por isso, vamos evitá-lo.
Falou enquanto estadista, estando lá, ou seja: mais próximo da região do conflito, em vez de na suposta segurança garantida pela distância de falar estando no Brasil.
Segurança política – a própria repercussão da fala mostra esse componente.
Falou e mesmo com o chilique de Netanyahu e de seu chanceler, reafirmou que não voltava atrás.
E eis que não teve nenhum dirigente para o desmentir.
Quem iria, na condição de dirigente nacional, ter o cinismo ou o mau caráter de defender Netanyahu, numa discussão dessas?
Os aliados mais próximos, é verdade.
Porém, a imagem que acompanha este texto, da ira presidencial e de uma palestina fazendo um carinho nos restos mortais do filho ou filha – o que não se sabe, por já estar no invólucro de sepultamento – mostram que há muito deixou de ser contra o Hamas.
Agora é limpeza étnica, sim; é a erradicação do povo palestino – como demonstra o isolamento de quem restou vivo à dizimação já realizada, encurralado em Rafah.
E outra: Lula não falou nada que não se saiba.
O próprio premiê israelense já fez comparação parecida – senão pior.
Na semana passada, se resgatou sua fala, no congresso sionista, na Alemanha, em 2015, em que relativizou a atuação de Hitler em relação aos judeus, na Segunda Guerra (no portal, há reportagem sobre isso).
E num instante, após a fala do presidente brasileiro, os EUA convocaram o Conselho de Segurança da ONU para propor um cessar-fogo.
Nas memórias sobre sua passagem na presidência (“Uma terra prometida”), Barack Obama cita os dilemas de exercer o cargo e ter que fazer concessões.
Porém – frise-se, também! – muito diferente da postura do, à época, vice, hoje titular do cargo: que vergonha, Biden!
Ao relembrar a Primavera Árabe, por exemplo, Obama cita o estado de espírito de ver o que acontecia na Praça Tahrir, no Cairo, onde houve as primeiras manifestações de povos árabes contra seus governantes, geralmente autocratas.
E citava as tratativas para convencer o então dirigente Hosni Mubarak de deixar o poder, o quanto o egípcio achava que o levante não ia longe, e as pressões para decidir apoiar a onda popular.
Um dos países onde poderia se dar algo semelhante era no Bahrein, uma das regiões estratégicas do planeta, assim como o Canal de Suez e o estreito de Gibraltar.
Os potiguares de Natal (RN) ou quem vai passar férias lá já deve ter se deparado com a precisão com que – à época em que estive – dois caças Xavante da FAB deixam o continente em direção ao mar: aquela “esquina” do território brasileiro, no Rio Grande do Norte é um desses pontos estratégicos do planeta.
Pois, então: o dilema do dirigente estadunidense era ir ao encontro de seus princípios (que destaca bastante no livro, ao citar o racismo e até as contestações sobre ser cidadão dos EUA), e defender o clamor das massas oprimidas naqueles países, ou ir de encontro aos princípios e defender os interesses do país que fora escolhido para governar.
Para esclarecer: no Bahrein estava sediada a 9ª Frota, que dava apoio às operações que os EUA mantinham à época, no Iraque e Afeganistão.
Voltando ao Brasil, o presidente fala pelo país e conforme seus princípios.
Embora, neste caso, não tenha tido que escolher: ou escolheu – falou o que precisava e deve arcar com o desgaste político.
Mas, no exato momento em que escrevo, um pop-up acusa publicação de editorial em um portal afirmando que o brasileiro balizou o debate mundial.
O Brasil adota, para a diplomacia, a doutrina de primar pela paz e por dirimir conflitos pela via da negociação.
Na mesma passagem do livro de Obama, ele destaca o quanto isso dificultava a movimentação pelo avanço democrático no Oriente médio e norte da África.
Era, então o governo de Dilma Rousseff.
E tal doutrina é praticada – não é só discurso: quantos povos excluídos desde há muito não viraram brasileiros?
O próprio “sucessor” da presidente – a quem Lula chama de “golpista” – é um exemplo: o sobrenome Temer é libanês.
Se o gesto acabou se convertendo em realidade que, hoje, se dá em detrimento de cidadãos brasileiros “raiz” é assunto para outro texto.
Porém, não apenas Lula não errou ao falar, como acertou – já o deveria ter feito antes, aliás – e deu uma contribuição para colocar o Brasil numa posição que, pela extensão, riqueza, pelo que já deu ao mundo (de riquezas, principalmente), pelo que já recebeu de povos e pelo que nos cobram como detentores da maior fatia da Amazônia, já deveria estar falando mais alto, mais grosso.
Sendo mais respeitado, enfim.
O estrebuchar do chefe da diplomacia israelense mostra não só que não estamos errados, como sinaliza o contrário: mostra que o caminho é este, mesmo.
Não vou dizer que foi sintomático o gesto de vários governos europeus em convocar os embaixadores da Rússia para cobrar explicações sobre a morte do opositor de Putin, Alexey Navalny.
A morte foi divulgada na quinta (15), mas, a cobrança só veio nesta terça-feira (20), coincidentemente um dia após a repercussão diplomática da fala do presidente brasileiro.
Os europeus poderiam fazer isso com os embaixadores de Israel, também.
Ah! E quanto às sanções… ah… poupe-me.
Como respondi, no comentário de uma postagem de rede social, basta ao Brasil fazer um susto – com perdão pela citação – mostrando um bife, que o mundo fica pianinho.
Explica-se: na condição de maior produtor/fornecedor de proteína animal do planeta, ninguém vai querer mexer com o item que mais interfere na alimentação das populações de todos os continentes, dos habitantes de seus países, de eleitores ou da oposição – esta última, aliás, como cita o ex-presidente estadunidense, em seu livro, uma preocupação recorrente na maioria das decisões que tomava.