Em um ano, nenhuma criança nasceu em 35 cidades de Pernambuco

No período analisado, mais de metade das grávidas deu à luz em outra cidade, não na que vive
Érica Paloma deu à luz Elisa, no início de novembro, no município de Afogados da Ingazeira, no Sertão; falta de estrutura leva mulheres a se deslocarem por até 400 quilômetros para dar à luz. (Foto: arquivo pessoal)

Não nasceu ninguém em 35 municípios pernambucanos e no Arquipélago de Fernando de Noronha em um ano inteiro.

Longe de demonstrar que a taxa de natalidade dessas cidades está caindo, o dado reflete a realidade de diversas cidades do estado onde não há estrutura para atendimento obstétrico e ginecológico.

O levantamento, feito pelo Tesouro Nacional a pedido do G1 (responsável por esta reportagem), analisou 50% de todos os atendimentos do Sistema Único em Saúde (SUS) no estado em 2021, ano dos dados consolidados mais recentes.

O Tesouro faz esse tipo de análise para acompanhar onde e de que forma os recursos públicos são aplicados.

A ausência de casas de parto e maternidades faz com as gestantes residentes no estado precisem viajar até centenas de quilômetros para realizar alguns procedimentos do pré-natal e também para dar à luz. Mais da metade das pernambucanas deu à luz em uma cidade diferente da que vive, no período analisado.

Moradora da área rural de Ingazeira, a agricultura Érica Paloma, de 28 anos, foi uma dessas gestantes que precisaram buscar atendimento noutro município, tanto para realizar acompanhamento especializado durante o pré-natal, quanto na hora do parto da pequena Elisa — que nasceu no início de novembro.

Com risco de trombose, Érica precisou viajar para a capital, inicialmente, uma vez por mês, e depois, a cada 15 dias, desde o quarto mês de gestação, para realizar acompanhamento com hematologista no Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (Imip).

A rotina de viagens com 6h30 de duração foi desafiadora, segundo Érica.

“Era sempre à noite, para chegar no Recife de manhã, para as consultas; e o retorno era no mesmo dia. Foi muito cansativo. Principalmente no final do pré-natal, foi bem incômodo para mim”.

“Quando foi chegando perto do parto, a médica liberou para que eu tivesse minha filha aqui, em Afogados da Ingazeira (a 20 minutos de distância). Foi melhor, porque o meu marido pode acompanhar”, contou Érica Paloma, que teve Elisa com 39 semanas de gestação.

Os dados do Tesouro Nacional mostram 52.835 atendimentos relacionados a partos e obstetrícia a mulheres residentes em Pernambuco. Foram 32.205 partos de mulheres residentes no estado, das quais 16.179 (50,25%) precisaram ser deslocadas de município para parir.

Secretária de Saúde de Ingazeira, a 388 quilômetros do Recife, no Sertão de Pernambuco, Fabiana Torres explica as condições que fizeram o município aparecer na lista das cidades onde não nasceu ninguém em 2021.

Ela diz que, apesar de atender a todos os parâmetros exigidos pela “Rede Cegonha” — que dá suporte às mulheres no planejamento reprodutivo e na atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério — a cidade sertaneja não tem condições de manter a estrutura exigida para a realização de partos.

“Para realizar partos, o HPP (Hospital de Pequeno Porte) do município teria que ter uma equipe médica completa de plantão, com todos os profissionais. Mas a cidade recebe por mês, do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) para a Saúde, um valor que varia entre R$ 9.450 e R$ 9.600. Apesar de a gente ser bem referenciado no atendimento pré-natal, oferecendo todos os exames às gestantes, transporte para os casos de alto risco, medicação, taxa zero de mortalidade e também em relação ao pré-natal do parceiro, o município não tem condições de manter uma equipe completa de plantão para a realização dos partos”, explicou a secretária de Saúde.

No caso de Ingazeira, Fabiana Torres explica que só acontecem partos no município quando a mulher já chega com o bebê “coroando” na unidade de saúde e não dá tempo de fazer a transferência para Afogados da Ingazeira — que fica a cerca de 20 minutos de carro e atende as gestantes no Hospital Regional Emília Câmera.

Nos casos mais complicados e de gestação de risco, as mulheres precisam ser transferidas para o Recife, numa viagem que demora, pelo menos, seis horas.

Municípios concentram atendimentos

Na outra ponta, alguns municípios concentram um percentual de nascimentos maior do que o número de mulheres gestantes (grávidas).

Considerando apenas mulheres que residem em Pernambuco, os municípios que mais receberam grávidas foram: Recife (5.475), Caruaru (1.503), Palmares (1.147), Garanhuns (1.039), Arcoverde (872), Vitória de Santo Antão (824), Nazaré da Mata (819), Araripina (549), Ouricuri (546) e Olinda (488).

Numericamente, os municípios com maior número mulheres que tiveram seus filhos noutros municípios foram: Jaboatão dos Guararapes (1.053), Olinda (679), Paulista (608 — quase todos os bebês nasceram fora), Camaragibe (280), Petrolina (269), Igarassu (268), Cabo de Santo Agostinho (263), Ipubi (257), Moreno (241) e Abreu e Lima (236).

No outro extremo, estão as 35 cidades citadas no início dessa reportagem, onde nenhuma das gestantes residente conseguiu ter seu filho no local em que vivem.

Problema começa bem antes do nascimento

Promessa de campanha de vários candidatos durante a campanha ao governo do estado em 2022, incluindo a governadora Raquel Lyra (PSDB), a construção de novas maternidades deve amenizar o problema, mas não solucionar. É o que analisam especialistas que atuam no Comitê de Mortalidade Materna de Pernambuco.

Paula Viana, enfermeira e coordenadora do Grupo Curumim, entidade da sociedade civil que atua há mais de 30 anos com questões relacionadas à saúde reprodutiva das mulheres, explica que o problema começa ainda na atenção primária.

Ela lembra que algumas boas práticas que já foram valorizadas em Pernambuco, como o reconhecimento das parteiras, não acontecem mais no estado, e que uma gravidez com risco habitual não precisaria ter atendimento hospitalar.

“Uma gravidez de risco habitual pode ter seu atendimento num município pequeno — sabendo quais são os recursos que o município tem, não apenas financeiros. Existem as parteiras, que já receberam equipamentos e incentivos em Pernambuco — um dos estados pioneiros nesse sentido. Uma gestante sem risco pode ser atendida por uma parteira, tendo médicos e serviço de saúde de referência para, em algum momento, se precisar, ela ser encaminhada. O problema é que ela [a gestante] é encaminhada para um atendimento sem nenhuma assistência anterior”, analisou Paula Viana.

Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, Pernambuco tem atualmente 41 maternidades e centros de parto.

Nas contas da SES, o município de Jaboatão aparece com duas unidades de saúde para a realização de partos (ver quadro abaixo). Entretanto, de acordo com a prefeitura, a cidade conta com um Centro Municipal de Parto Normal, instalado no bairro de Sucupira, e que vai funcionar integrado com a Maternidade Municipal Maria Rita Barradas, ainda em construção e sem data para ser inaugurada.

Segundo o governo de Pernambuco, a rede estadual de saúde tem 134 leitos de UTI Neonatal, distribuídos da seguinte maneira:

Entre os anos de 2018 e 2022, 388 mulheres morreram em até 42 dias após o parto, segundo dados do governo de Pernambuco:

Já o número de crianças é bem maior. Um total de 5.633 crianças morreram com até 27 dias nos últimos cinco anos no estado:

Paula Viana acrescenta que o estado conta com profissionais de qualidade, e considera que falta planejamento e supervisão dos serviços de saúde que atendem as mulheres.

“O estado deixa de fazer o seu papel de supervisor, de regulador, de trabalhar, por exemplo, os consórcios entre os municípios e, assim, desenhar a rede de saúde estadual. Não é só o município que não investe na atenção primária, que é o seu dever; o estado não investe no planejamento e na regulação”, analisa a enfermeira.

Ela acrescenta que os Comitês de Estudo da Mortalidade Materna (CEEMM) foram criados na década de 1990 e que Pernambuco foi um dos primeiros estados a criar a representação, em 1991, sob a liderança do médico Cícero Costa, do Cisam (Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, da Universidade de Pernambuco), com a participação dos movimentos sociais e da academia.

O comitê não investiga os óbitos, mas analisa o que pode ter contribuído para a morte das mães. Mesmo viajando quilômetros para parir, as mortes não são registradas nos locais para onde as mulheres foram transferidas, mas nos municípios onde têm residência.

Nesse aspecto, Paula Viana ressalta que ainda existem falhas graves no registro de informações, ao ponto de em muitos casos não haver o preenchimento do local de nascimento do bebê.

“Mesmo que a mãe tenha sido transferida, ela e o bebê voltam para a atenção primária, para o município, por isso as informações são essenciais para evitar intercorrências e a morte mesmo. A gente tem um percentual de 80% de mortes maternas evitáveis; são poucos os casos de mortes inevitáveis. Mas para serem evitadas, é preciso que as informações estejam bem registradas, que a mulher saia do município medicada. A hipertensão, por exemplo, ainda é a primeira causa de morte materna no Brasil e em Pernambuco, e é 96% evitável. É inadmissível uma morte assim”, continua Viana.

Gigi Bandler, da coordenação colegiada do CEEMM-PE e do Fórum de Mulheres de Pernambuco, questiona o modelo de atendimento às mulheres nos serviços de saúde e uma cultura que tira das mulheres o poder sobre o parto e medicaliza algo natural.

“Queremos outro tipo de atendimento ao parto. Existe uma cultura da cesariana; o pré-natal, que deveria estar fazendo essa preparação da mulher para o parto normal, está muito aquém do que deveria. As equipes não são completas, os profissionais precisam ser recapacitados e é necessário adotar um sistema de boas práticas. O que acontece é que a gestação e o parto também fazem parte de uma cultura patriarcal, colonial e racista, que tira o direito da mulher partejar”, explica Gigi Bandler.

Ela também critica a realização de procedimentos invasivos e muitas vezes desnecessários, como a episiotomia (corte entre a vagina e o ânus que facilitaria a passagem do bebê), o uso de soro com anestésico, entre outros procedimentos.

Em vistorias realizadas pelo comitê, o órgão chegou a identificar serviços de saúde com percentual de até 67% de cesarianas, além do aumento das transferências de gestantes para hospitais no Recife.

“No Hospital Dom Moura, por exemplo, as transferências de gestantes para o Recife passaram de 13%, em 2021, para 19%, em 2023. As maternidades da Região Metropolitana já são superlotadas; isso afeta as mulheres e os profissionais de saúde.

Os serviços de saúde precisam ser respeitosos com as mulheres. Só há intervenção se existem complicações. A morte materna está diretamente relacionada com a desvalorização da rede e com a desvalorização dos profissionais. É algo complexo, mas que precisa ser enfrentado. Não adianta haver novas estruturas repetindo velhos modelos”, acrescentou Gigi Bandler.

O que diz o governo de Pernambuco

Questionado pelo G1, o governo de Pernambuco havia informado, em 28 de julho, que a obra do Hospital da Mulher seria entregue no final de 2023. No dia 6 de dezembro, a Secretaria de Saúde informou que “a entrega está prevista para o primeiro trimestre de 2024”.

A Secretaria de Saúde disse que a primeira das cinco maternidades prometidas durante a campanha de 2022 da governadora Raquel Lyra (PSDB) será implementada em Caruaru. Outras duas estão confirmadas em Ouricuri, no Sertão, e em Garanhuns, no Agreste.

Sobre os Centros de Partos Normais, a SES informou que eles serão vinculados às novas maternidades.

A SES informou, ainda, que “tem trabalhado na organização dos fluxos e encaminhamentos dos pacientes de acordo com cada caso em particular e que a Central de Regulação ocorre 24 horas por dia, todos os dias, ininterruptamente, de forma a garantir a assistência à saúde”.

Já sobre a medicalização do parto, a secretaria disse que “realiza, periodicamente, colegiados de maternidades, fóruns perinatais, webseminários e webpalestras destinados aos gestores e profissionais que atuam na assistência de saúde, sobre práticas baseadas em evidências científicas, assim como os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e contra a medicalização”.

Juliana Cavalcanti, Paulo Veras, G1 PE

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