Quando Jocelyn Zelaya foi apanhada por uma saraivada de tiros nas ruas de San Salvador em 2017, a jovem mãe estava simplesmente “no lugar errado, na hora errada”, diz a sua tia Jackelyne.
Um grupo de homens armados com armas automáticas abriu fogo para assassinar um membro de uma gangue rival do outro lado da estrada. Zelaya, então com 20 anos, foi pega na linha de fogo. Ela foi atingida por oito balas, disse sua tia à CNN (responsável por esta reportagem).
“Mas ela não morreu”, relata.
“Então, eles a levaram para o hospital”, lembra Jackelyne Zelaya, lutando para conter as lágrimas.
“O ataque foi por volta das 18h e, quando cheguei ao hospital, às 22h, ela tinha acabado de morrer – seu corpo ainda estava quente”.
A morte de Jocelyn, que privou Marcela, de um ano de idade, de sua mãe, foi apenas um dos milhares de assassinatos naquele ano em El Salvador, um período em que o pequeno país centro-americano de 6 milhões de habitantes teve as maiores taxas de homicídios do mundo, de acordo com o Banco Mundial.
Muitos dos mortos, como Jocelyn, eram espectadores inocentes envolvidos numa guerra territorial entre duas enormes gangues criminosas, a Mara Salvatrucha e o Barrio 18.
Até hoje, Zelaya não sabe qual gangue foi responsável pela morte de sua sobrinha. “Ficamos sozinhos em nossa dor. Nós a enterramos e criamos sua filha tendo que explicar por que sua mãe não está aqui”, diz ela.
Mas, como muitos outros que perderam os seus entes queridos, ela sabe a quem atribui o crédito por enfrentar essas gangues: Nayib Bukele, o presidente, homem forte do país e autodenominado “o ditador mais legal do mundo” e “rei filósofo”.
Apesar de ter sido criticado por opositores e organizações internacionais de direitos humanos por alegados abusos em grande escala dos direitos humanos na sua repressão ao crime, Bukele é favorito para a reeleição quando El Salvador for às urnas neste domingo.
“O Método Bukele”
Político astuto, Bukele começou sua corrida ao poder enquanto a agência de publicidade de sua família trabalhava para o governo da FMLN, o antigo grupo guerrilheiro da Guerra Civil que venceria duas eleições presidenciais, em 2009 e 2014.
Mas a verdadeira ascensão de Bukele ao auge levaria um salto depois de ser expulso pelo seu partido em 2017 e se tornar um outsider.
Como tal, venceu as eleições de 2019 na primeira tentativa, com a promessa de livrar o país da corrupção e do suborno.
O jovem de 37 anos rapidamente ganhou reputação como disruptor e inovador.
Ele adotou o bitcoin como moeda legal em El Salvador em 2021 e convidou seus amigos do mundo da tecnologia para surfar no Pacífico.
Mas, acima de tudo, foi a repressão feroz de Bukele às gangues criminosas que alimentou sua popularidade tanto no mercado interno quanto em toda a América Latina, tornando-o o grande favorito neste domingo (04).
Bukele ostenta uma das taxas de aprovação mais altas da América Latina, ultrapassando regularmente os 70% na maioria das pesquisas independentes.
A oposição, entretanto, está espalhada por vários candidatos. Sob Bukele, a taxa de homicídios em El Salvador despencou.
Um ano depois de ele chegar ao poder, o número caiu para apenas um terço do que era em 2017, ano em que Jocelyn Zelaya foi morta.
Hoje, afirma o governo, são menos de dois assassinatos a cada 100.000 pessoas – uma taxa de homicídios inferior à dos Estados Unidos, embora ONG nacionais e internacionais tenham manifestado dúvidas sobre a transparência dos números do governo.
Parte desse sucesso inicial pode ser atribuído à pandemia de Covid-19, mas poucos duvidam da influência do que desde então passou a ser conhecido em toda a América Latina como o “Método Bukele”.
Em março de 2022, um surto de violência de gangues que matou 62 pessoas em um único dia deixou Bukele enfrentando a crise mais sangrenta da sua presidência.
Ele respondeu introduzindo poderes de emergência que, segundo ele, lidariam com as gangues de uma vez por todas.
No ano passado, uma investigação do Departamento de Justiça dos EUA revelada num tribunal de Nova York afirmou que Bukele estava a negociar secretamente uma trégua com as mesmos gangues que afirmava combater, mas o estado de emergência não foi revogado.
Bukele negou ter negociado com as gangues.
As garantias constitucionais foram suspensas, permitindo à polícia deter uma pessoa sem acusação formal por até 15 dias e grampear o telefone de qualquer pessoa sem ordem judicial.
O Exército foi mobilizado e o número de detenções disparou.
No início de 2023, o governo de Bukele construiu um amplo complexo penitenciário com capacidade para até 40 mil presos, apelidado de “Centro para o Confinamento de Terroristas”.
Mas nem todo mundo é fã.
Os críticos acusam Bukele de cometer imprudentemente violações dos direitos humanos em grande escala na sua luta contra as gangues e de desmantelar os freios e contrapesos do país ao atacar os poderes Legislativo e Judicial de El Salvador.
Quase dois anos após os assassinatos de março, o estado de emergência e a restrição das liberdades civis em El Salvador permanecem em vigor após múltiplas renovações aprovadas mensalmente pelo Congresso.
Ainda mais pessoas estão agora na prisão — mais de 75.000 em janeiro.
Assim, embora El Salvador já não enfrente taxas recordes de homicídios, agora ostenta a maior taxa de encarceramento do mundo.
Entretanto, Bukele também conseguiu aumentar o seu controle sobre as instituições estatais que deveriam ser independentes da presidência e controlar o seu poder.
Em janeiro de 2020, ele entrou no Congresso rodeado de soldados totalmente armados para pressionar os legisladores a permitirem um empréstimo de emergência para a compra de novos armamentos.
Um ano mais tarde – após a maioria absoluta do seu partido Novas Ideias nas eleições legislativas –, o novo Congresso leal a Bukele demitiu os juízes do Supremo Tribunal de El Salvador, bem como o procurador-geral que resistiu a algumas das suas primeiras reformas.
Uma história de duas vítimas
Jackelyne Zelaya não vê o persistente estado de emergência como um problema. Ela também não está preocupada com as alegações de que Bukele está mudando o sistema político para acumular poder.
Bukele concorre a um segundo mandato com base numa disposição especial do novo Supremo Tribunal porque seis artigos distintos da Constituição proíbem especificamente a reeleição presidencial.
“Temos segurança agora. Não é perfeito, mas deixe-o durar até que todas as pessoas que causaram dor tenham pagado o preço”, diz ela, acrescentando que não passará o dia das eleições ociosa em casa.
“Vou sair e chamar todos os meus vizinhos, todos os meus amigos para virem votar no presidente”, declara.
“Você poderia imaginar o que acontecerá se ele perder? Todas aquelas pessoas cheias de ódio que agora estão na prisão sairiam e viriam atrás de nós”, diz ela.
Mas e os cidadãos cujas vidas foram arruinadas pelas políticas de Bukele?
Maria, 28 anos, tem quase a mesma idade que Jocelyn Zelaya teria se ainda estivesse viva.
la também perdeu alguém para as gangues: um de seus irmãos, há quase uma década.
Maria não é seu nome verdadeiro — a CNN concordou em ocultar sua identidade por razões de segurança.
Ela tem medo de ser atacada por contar sua história, depois de ver o lado terrível da abordagem dura de Bukele contra o crime.
Numa sexta-feira, dois policiais chegaram à casa de sua família e pediram que ela fosse à delegacia – um informante anônimo a acusou de pertencer a uma gangue.
“Disseram-me que era uma ligação anônima: alguém havia ligado para a polícia para dizer que eu fazia parte de uma gangue. Eu disse a eles que era inocente e exigi uma explicação, e tudo o que fizeram foi me colocar em uma cela”, lembra ela.
Na segunda-feira seguinte, diz ela, foi acusada de associação criminosa e encaminhada para a penitenciária feminina de Santa Ana.
Ela diz que nos seis meses em que esteve presa nunca viu um juiz.
Quando ela foi finalmente libertada, documentos divulgados pela CNN mostram que ela nunca foi considerada culpada.
A detenção a afeta até hoje.
Apesar da sua libertação, Maria está agora impedida de sair do país – apesar de ter um visto válido para trabalhar nos Estados Unidos, diz ela – e tem de se apresentar quinzenalmente na esquadra da polícia local.
Maria também tem lutado para encontrar um emprego em sua comunidade unida por causa de seu encarceramento, disse ela à CNN.
Maria está longe de ser a única a alegar maus-tratos.
Desde que Bukele introduziu o estado de emergência, têm sido generalizadas as alegações de violações dos direitos humanos, incluindo abusos por parte das autoridades, detenções de pessoas inocentes e condições desumanizantes atrás das grades.
Embora as autoridades salvadorenhas questionem alguns dos dados apresentados pelas organizações de direitos humanos, não negam ter cometido o que caracterizam como erros inevitáveis – que chegam aos milhares.
Em maio do ano passado, o governo libertou quase 5.000 pessoas que admitiu terem sido detidas por engano.
Dois meses depois, Marvin Reyes, secretário de um sindicato de trabalhadores da Polícia Nacional, acusou o governo de impor “quotas de detenção” para as unidades policiais se reunirem no início do estado de emergência, segundo a agência EFE.
O ministro da Segurança, Guillermo Villatoro, até brincou que não havia nada de estranho em um número tão elevado de erros. “Se a polícia detém apenas os culpados, qual é o sentido de ter o procurador-Geral e o sistema judicial?”, disse Villatoro à mídia local no ano passado, em maio.
Ele também falou que o governo investigaria qualquer morte ocorrida atrás das grades após relatos de que vários presos que haviam sido detidos sob as leis do estado de emergência morreram na prisão.
“250 por célula”
Nem a polícia salvadorenha nem o Ministério da Segurança responderam a várias perguntas da CNN sobre as alegações de abuso policial e repressão à segurança no país.
Maria diz que ainda tem pesadelos com as condições que viveu dentro da prisão. “Fui colocada numa cela com 250 mulheres e só havia 20 beliches para todas aquelas pessoas”.
Ir ao banheiro significava despir-se na frente de outros presas e os guardas da prisão espancariam qualquer uma que demorasse muito, diz ela.
Pior ainda foi a comida. “Não passou um dia sem que eu encontrasse um inseto, uma mosca ou algum animal na minha refeição. Todos os dias tínhamos que comer aquela comida porque não havia mais nada. E, se alguém se recusasse a comer, era levada para castigo”.
O seu relato coincide com as alegações feitas pela Human Rights Watch (HRW) sobre detenções em massa e alegadas torturas nas prisões de El Salvador.
Mas Bukele apareceu algumas vezes até para celebrar as condições preocupantes nas prisões de El Salvador.
No passado, ele publicou pessoalmente vídeos elegantemente editados retratando presos forçados a correr com as mãos na cabeça e colocados, uns contra os outros, em celas superlotadas.
Em janeiro, Bukele tuitou que se sentia “honrado” [sic] por ser criticado pela congressista norte-americana Ilhan Omar, que, juntamente com outros 13 representantes democratas, insta os EUA a reverem as suas relações com El Salvador à luz dos alegados abusos.
Samuel Rodriguez, da Movir, uma associação que ajuda as vítimas da repressão, diz que há uma razão pela qual Bukele não se esquiva de imagens tão controversas: é o que os seus apoiantes querem ver. “Bukele sabe que essas imagens lhe dão votos”, diz ele.
Um modelo para a região?
Os defensores dos direitos humanos em toda a região temem que a popularidade de Bukele possa levar outros líderes a imitar os seus métodos.
Honduras, que há muito enfrenta problemas profundamente enraizados com o crime organizado, anunciou um estado de emergência semelhante em dezembro de 2022, que permanece em vigor.
Tal como em El Salvador, a disposição significa a suspensão de vários direitos constitucionais, incluindo a liberdade de circulação, o direito de associação e reunião, e a inviolabilidade do lar, de acordo com o Wola, um grupo de reflexão regional com sede em Washington DC.
No Equador, o novo presidente Daniel Noboa também anunciou planos para construir uma série de novas prisões e até apresentou a ideia de colocar penitenciárias em navios de cruzeiro abandonados enquanto reprime a crise de segurança alimentada por gangues no país, embora tenha dito à CNN que “não pretendia copiar o modelo de ninguém”, e que a abordagem de Bukele não seria aplicável ao Equador.
Em pelo menos 13 países da América Latina, a maioria da população “não se importaria que um governo antidemocrático chegasse ao poder se resolvesse os problemas”, de acordo com uma sondagem de 2023 da Latinobarometro.
Ao fazer a mesma pergunta, Jackelyne Zelaya está indecisa. Ela admite que também tem medo de que, como Maria, ela também possa ser presa com base em nada mais do que uma ligação anônima.
Mas Zelaya diz que as suas preocupações são compensadas por um cenário mais amplo – a esperança de que os seus próprios filhos pudessem ter uma vida mais normal do que era possível quando a sua sobrinha foi baleada.
“Eu sei que não é perfeito. Talvez dos mil que foram presos, cem eram inocentes”, diz ela. “Aí eu olho para os meus filhos — tenho dois de 16 e 23 anos — e vê-los poder sair à noite, ir jogar bola na estrada com os amigos sem medo de serem mortos ou recrutados para algo ruim, isso não tem preço”.
Maria, porém, vê um quadro geral diferente. Ela quer que o seu país e o mundo abram os olhos para o que está acontecendo nas prisões de El Salvador. Algumas das pessoas que foram encarceradas injustamente nos últimos anos podem nunca ter a oportunidade de sair, acredita ela.
“Muitas vezes penso em todas as pessoas que morreram na prisão e em todos aqueles que eram inocentes”, diz ela. “Eles estavam em um lugar onde nunca deveriam estar e morreram lá”.
Stefano Pozzebon – CNN