Debate sobre fim dos ‘saidões’ expõe desafios da ressocialização

Há pelo menos três projetos em tramitação no Senado regulamentando as saídas; cometimento de crimes é argumento de críticos ao benefício
Aguardados por familiares, presos são liberados em saída temporária em Brasília (DF), sob vigilância de policiais penais. (Foto: reprodução / Seape / divulgação)

“As autorizações de saída representam um considerável avanço penalógico e os seus resultados são sempre proveitosos quando outorgados mediante bom senso e adequada fiscalização.”

Foi com essa justificativa que o ministro da Justiça do ex-presidente João Figueiredo, Ibrahim Abi-Ackel, incluiu a saída temporária de presos no projeto de lei que originou a Lei de Execução Penal (Lei 7.210, de 1984).

Agora os parlamentares questionam esse direito dos condenados a regime semiaberto — que hoje podem sair até cinco vezes ao ano, normalmente durante as datas comemorativas.

A Câmara dos Deputados analisa as mudanças feitas pelos senadores ao Projeto de Lei (PL) 2.253/2022, que restringe as saídas, permitindo-as apenas para estudo e pelo tempo necessário para essa atividade.

Em debate na Comissão de Segurança Pública (CSP) do Senado em 2023, especialistas divergiram sobre a eficiência da ressocialização promovida pelos chamados “saidões” diante das taxas de evasão (quando o preso não retorna à prisão ao final da saída temporária).

Mas a divisão de opiniões não se reproduziu na votação em Plenário, no dia 20 de fevereiro: apenas os senadores Rogério Carvalho (PT-SE) e Cid Gomes (PSB-CE) votaram contra o fim do benefício no modelo atual.

Para o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), relator do projeto, a aprovação do texto é uma resposta do Congresso ao desejo da sociedade brasileira — que, na avaliação dele, não tolera mais as saídas temporárias.

“O nosso sistema carcerário infelizmente encontra-se superlotado e, em muitos estados, com instalações precárias, o que impede a devida ressocialização dos presos”, disse o relator.

“Ao se permitir que presos ainda não reintegrados ao convívio social se beneficiem da saída temporária, o poder público coloca toda a população em risco”, acrescentou.

Ressocialização

A frase citada pelo ex-ministro da Justiça Abi-Ackel no projeto da Lei de execução Penal é do especialista em criminologia Elias Neumam, que publicou nos anos 60, na Argentina, estudos sobre prisão aberta. Para o juiz do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Mauro Ferrandin, o sistema penal brasileiro, como um todo, falha em readequar os presos à sociedade. Doutor em direito e ciência política pela Universidade de Barcelona (Espanha), ele afirmou à Agência Senado que a distância do convívio social provocada pelo encarceramento prejudica a capacidade do preso de obedecer à lei.

“Aquele que passa pelo sistema tende a voltar para ele e, quanto mais segregado for o indivíduo, mais ele perderá sua condição de viver em sociedade”.

“As alternativas à pena privativa de liberdade, por outro lado, garantem a possibilidade de o indivíduo refletir sobre seus erros (…), responder por eles sem a segregação social tão escancarada”.

“Certo é que depois de dezenas de anos estudando o tema e ter visto a legislação, ano após ano, recrudescer, nunca percebi qualquer sinal de redução da criminalidade ou caso de ressocialização”.

Mas na opinião do consultor legislativo em direito penal no Senado Rafael Erthal de Sá, a imposição das normas do presídio aos presos exerce papel na reabilitação.

“É importante mencionar que a própria disciplina imposta pelo sistema de execução penal é fator que colabora para a ressocialização do condenado”, disse à Agência Senado (responsável por esta reportagem).

“Assim, o respeito às regras internas dos estabelecimentos prisionais colabora para a reinserção social do preso, quando for liberado”, acrescentou.

Originalmente, o PL 2.253/2022 extinguia completamente o saidão.

Mas os senadores aprovaram emenda do senador Sérgio Moro (União-PR) para manter o direito para os presos que fazem curso supletivo profissionalizante, ensino médio ou superior.

Evasões

Além das discussões sobre os melhores meios de ressocialização, parlamentares e especialistas comumente recorrem a dados estatísticos para sustentar suas opiniões.

Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senappen) revelam que 11.415 presos não retornaram depois das saídas temporárias do primeiro semestre de 2023.

Isso representa 6,27% de todos presos que cumprem regime semiaberto no país, beneficiados pelas saídas ou não.

As informações foram analisadas apenas nos estabelecimentos que abrigam pelo menos uma pessoa condenada que esteja no regime semiaberto.

No entanto, as taxas geram interpretações conflitantes.

“Trata-se de um quantitativo ínfimo se comparado ao número daqueles que cumpriram com as determinações legais e retornaram”, analisa o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária em nota técnica entregue aos senadores.

Mas o senador Moro discorda da conclusão.

“Se nós formos pensar em quatro ou cinco feriados por ano, 5% a cada uma dessas oportunidades, nós temos um número substancial de presos que não retornam”, disse o senador em plenário.

“E aí as forças de segurança, que já estão sobrecarregadas, têm que ser mobilizadas para buscar esses foragidos”, acrescentou.

“Pior: parte desses presos colocados em liberdade cometem novos crimes”, concluiu.

A fuga na saída temporária é considerada falta grave, mas por si só não é crime.

A evasão pode levar o preso a perder os dias que trabalhou ou estudou para descontar no cumprimento da pena, entre outras consequências.

Caso volte à prisão, ele não poderá mais usufruir da saída temporária, salvo se houver “cancelamento da punição disciplinar” ou “demonstração do merecimento”, segundo a Lei de Execução Penal.

População carcerária

Por meio de sua assessoria, o senador Rogério Carvalho argumenta que sua posição favorável aos saidões não se baseia somente na ressocialização, mas também porque “reflete o posicionamento histórico do Partido dos Trabalhadores contra o encarceramento em massa”.

O assunto também foi mencionado no parecer do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) entregue aos parlamentares antes da votação.

A organização afirma, no documento, que “a superpopulação carcerária é uma das principais causas de todas as demais violações a direitos fundamentais dos presos” e que “a promoção de medidas para tirar do encarceramento vem sendo concebida como importante instrumento de segurança pública”.

De acordo com o Senappen, há déficit de 32,5 mil vagas para o regime semiaberto no país.

A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) considera a falta de vagas um problema, mas isso não a impediu de declarar voto favorável à restrição do saidão.

Segundo ela, não há estrutura para o cumprimento da pena em regime semiaberto em alguns estados, como Goiás e Minas Gerais, o que faz com que alguns presos saiam diretamente do regime fechado para o aberto.

“Eu vou votar a favor, mas em nenhum momento vou passar pano ou fingir para o povo brasileiro (…)”.

“Vamos cobrar do Poder Executivo que cumpra o seu dever, invista, construa estruturas para os regimes semiabertos — disse a senadora na sessão de votação do projeto”.

Tema recorrente

No Senado, outras propostas sobre a saída temporária também estão sob análise dos parlamentares.

O PL 205/2024, do senador Carlos Viana (Podemos-MG), e o PLS 31/2018, do senador Ciro Nogueira (PP-PI), desarquivado em 2023, também esperam revogar os saidões.

Já o PL 476/2023, da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), busca agravar a pena quando o crime for cometido durante saída temporária ou outros casos fora da prisão.

Modelo atual

Com as regras em vigor, o condenado tem o direito de pleitear cinco saídas por ano, de até sete dias cada, para visitar familiares, realizar cursos ou outras atividades sociais.

Segundo dados do Senappen, 67,53% dos presos em regime semiaberto receberam autorização para sair com a finalidade de ver a família no primeiro semestre de 2023, o que corresponde a 122.953 beneficiados.

O preso precisa seguir os seguintes requisitos:

estar no regime semiaberto;

não ter cometido crime hediondo com morte;

ter bom comportamento, comprovado, por exemplo, por meio de certidão expedida pelo diretor do presídio;

ter cumprido no mínimo 16,6% da pena, se for sua primeira condenação; ou 25%, se reincidente;

compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.

A autorização para sair é feita pelo juiz de execução penal, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária.

Em alguns casos, como nos de crimes sexuais, há necessidade de outras análises.

O juiz pode solicitar, por exemplo, exame criminológico.

Assim, os presos têm que cumprir o que o psicólogo ou psiquiatra recomendarem no laudo, como tratamentos médicos.

Cada Vara de Execução Penal edita portaria no início do ano com suas próprias regras e datas dos “saidões”.

Normalmente, são escolhidas datas de comemorações familiares, pois o objetivo é o estreitamento dos laços com a família e a volta ao convívio social.

No entanto, não é obrigatório realizar todas as saídas de maneira conjunta, nem nas mesmas datas.

Há casos em Minas Gerais e no Maranhão em que as datas são pulverizadas, de modo que não há um pico de saídas temporárias.

Todos os beneficiados precisam informar o endereço de residência ou de familiar, onde deverão permanecer durante a noite. Eles são proibidos de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos do gênero.

Monitoramento

Apesar de a lei estipular que não precisa de vigilância direta nos saidões, o juiz pode exigir que determinados beneficiados utilizem a monitoração eletrônica, além de outras formas de fiscalização.

No Distrito Federal, cabe à Secretaria de Administração Penitenciária (Seape/DF) monitorar o cumprimento das condições impostas pelo juiz.

O órgão pode, por exemplo, visitar o endereço fornecido pelos presos.

O monitoramento eletrônico também pode ser utilizado a critério do juiz em outros casos além da saída temporária, como em prisão domiciliar ou em acusados de cometer crime com investigação ainda em andamento.

Caso o PL 2.253/2022 vire lei, o juiz terá mais hipóteses em que poderá determinar essa fiscalização, como no caso do livramento condicional.

Segundo dados do Senappen, das mais de 120 mil tornozeleiras eletrônicas contratadas, 76% estão em uso no país.

No entanto, quatro estados possuem déficit do equipamento: Acre, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Rio de Janeiro.

A ausência do aparelho foi uma das razões divulgadas pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para o não monitoramento, para o saidão de 2023, de condenados por tráfico que não retornaram ao presídio.

Tipos de regime

A autorização para sair temporariamente só alcança os condenados em regime semiaberto, com pena entre quatro e oito anos de prisão (se não reincidentes).

Nesse tipo de regime, o preso ficará em colônia agrícola ou local semelhante.

No Distrito Federal, por exemplo, há três locais que comportam esse regime.

O estabelecimento prisional pode abrigar pessoas de diferentes regimes.

A legislação prevê outros dois tipos de regimes aos condenados em pena privativa de liberdade, que não podem acessar o benefício.

O mais rigoroso é o regime fechado, para os sentenciados em mais de oito anos. Eles ficam em estabelecimento de segurança máxima ou média e só podem sair em algumas situações específicas, como para trabalhar em obras públicas.

As infrações mais leves cometidas por criminosos não reincidentes, com pena inferior a quatro anos, são punidas com regime aberto.

Esses sentenciados devem se recolher à noite em casa ou nas chamadas “casas de albergado”, mas podem exercer atividades fora do local com autorização.

Com o passar do tempo e cumprindo requisitos da lei, o condenado pode mudar de um regime mais severo para um mais brando, por meio da chamada progressão de pena.

Leia também